MST:  transformando territórios pelo cooperativismo

Entrevista com Cristina Sturmer dos Santos

O cooperativismo é, há décadas, um dos pilares de transformação social no Brasil. Muito além de um modelo de organização econômica, ele se afirma como prática coletiva de resistência, geração de renda e construção de justiça social. Para compreender melhor essa força, especialmente no campo, a Promocred conversou com Cristina Sturmer dos Santos, dirigente do MST e associada à COPAVI – Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória, em Paranacity (PR).

Cristina é economista, mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural e doutoranda no Instituto de Economia da Unicamp. Atualmente, atua também no Departamento de Projetos do FINAPOP (Financiamento Popular para Produção de Alimentos Saudáveis), iniciativa que conecta o financiamento popular à produção camponesa.

Ao longo da entrevista, ela compartilha reflexões sobre como o cooperativismo popular organizado pelo MST articula produção, solidariedade e sustentabilidade, enfrentando desafios estruturais e apontando caminhos para um modelo de desenvolvimento mais justo, inclusivo e agroecológico.

 

1. O MST tem construído, ao longo das décadas, uma das experiências mais sólidas de cooperativismo popular no Brasil, integrando produção, agroindustrialização, educação e cultura. Como o cooperativismo, neste momento, pode atuar como uma ferramenta real de transformação social frente às desigualdades que ainda marcam nosso país?

Uma das músicas que animam a mística do Movimento retoma elementos que ajudam a responder essa pergunta: “nossa primeira tarefa é ocupar, em toda terra improdutiva nós queremos trabalhar; nossa segunda tarefa é resistir entrar bem-organizado enfrentar para não sair; nossa terceira tarefa é produzir, com trabalho coletivo colher muito e repartir; e a nossa quarta tarefa é combater, toda forma de injustiça e abuso de poder”. Nela fica delimitado o papel da cooperação no processo de construção da reforma agrária e da modificação dos territórios. Assim, a cooperação como atividade ampla é compreendida como uma ferramenta fundamental para a organização da produção e da vida das famílias camponesas.

Algumas das ações de cooperação tomam a forma jurídica de cooperativas e associações para realizarem suas atividades formais. Atualmente, esse sistema conta com 180 entidades cooperativas espalhadas por todo o país, que executam diversas atividades relacionadas à produção, comercialização, serviços e transformação, em interação com as realidades locais, cercadas pelo agronegócio e afetadas pelas desigualdades no campo brasileiro.  É nesse contexto que existe uma atuação na realidade local em busca de justiça social por meio do trabalho autogestionado e da luta por direitos realizada pelas cooperativas e associações. Essa atuação ocorre alinhada a um processo de tentar viabilizar-se econômica e ambientalmente, por meio da produção de alimentos saudáveis.

A essência das cooperativas e associações contribui para o combate às desigualdades, à medida que, empenhada no projeto de construção da reforma agrária popular, através da organização da produção, da geração de renda e do fornecimento de alimentos saudáveis, alteram concretamente a realidade local. Elas são um exemplo de que é possível transformar territórios com a atuação coletiva. Diversos estudos demonstram como a reforma agrária impacta positivamente nos indicadores de desenvolvimento nos municípios, com emprego, renda, produção de alimentos e aumento de escolaridade. As cooperativas, ao viabilizarem a produção nos assentamentos, fortalecem esse processo.

2. Como se estrutura o cooperativismo dentro do MST e de que forma as cooperativas do movimento lidam com situações em que um assentado ou assentada enfrenta dificuldades na produção, como a perda de uma colheita? Que mecanismos de solidariedade econômica e apoio mútuo têm sido construídos nesse contexto?

As organizações cooperativas estão dentro de um sistema maior de cooperação e organicidade das famílias Sem Terra. Assim, ações locais de apoio e organização diante dos problemas estão associadas a mobilizações maiores. Como, por exemplo, os efeitos pelas famílias assentadas e pelas cooperativas do Rio Grande do Sul durante as enchentes que afetaram o estado em 2024. Mobilizações locais foram realizadas, mas também ocorreram ações de solidariedade e ajuda de várias partes do país, com doações de alimentos e brigadas para reconstrução.

Nessa construção histórica do Movimento, também se fortalecem os processos de intercooperação entre as cooperativas. Com o objetivo de criar uma rede que permita cooperação econômica, técnica e política. A organização das cadeias produtivas das áreas de reforma agrária tem sido o atual mecanismo para operacionalizar essa intercooperação.

3. Acreditamos que as finanças sustentáveis e a economia solidária devem andar juntas. Como o MST tem lidado com o desafio de criar mecanismos econômicos autônomos e sustentáveis, capazes de gerar renda, preservar o meio ambiente e fortalecer os territórios camponeses?

Como destacado anteriormente, a cooperação ocorre em vários níveis: entre os assentados que cooperam entre si, e por meio da intercooperação realizada pelas cooperativas e associações. A partir desses níveis, são desencadeados processos de cooperação e geração de autonomia em outros níveis, criando ferramentas que permitem, acima de tudo, a superação dos inúmeros desafios colocados para a produção nos territórios.

Essas ferramentas focam na criação de um ecossistema que contribui para a efetivação da reforma agrária popular. São exemplos de cooperação na comercialização, o Escritório Nacional de Comercialização Institucional, que organiza e promove o acesso das cooperativas das áreas de reforma agrária ao mercado institucional da grande São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e região nordeste do país. Ou ainda o FINAPOP, que organiza captações junto a investidores para financiar diversos projetos que focam no fortalecimento da produção de alimentos saudáveis, oferecendo alternativas de investimentos que promovem impactos sociais e ambientais positivos nos territórios. Ou as ações da Frente de Formação que organiza, entre outras coisas, os cursos formais demandados pelas cooperativas. Como exemplo temos o curso de Administração Popular que iniciou uma turma em julho de 2025, pelo PRONERA na UFSCAR. 

O fortalecimento de cadeias produtivas prioritárias para os territórios de reforma agrária é a materialização desse processo de criação de autonomia, pois promove também a cooperação para construção de logística e apoio técnico, como por exemplo, o que podemos fazer com a produção de bioinsumos. Atualmente, estão em processo de estruturação 12 cadeias produtivas em diferentes estágios, como por exemplo: arroz, feijão, leite, frutos amazônicos, cacau, grãos, sementes, entre outros. 

4. A agroecologia, adotada como princípio estruturante pelo MST, articula dimensões econômicas, ecológicas, culturais e de saúde pública. Como essa prática pode inspirar políticas públicas e alianças mais amplas na construção de uma nova relação com a natureza e com a produção de alimentos?

A agroecologia tem sido considerada pelo MST o caminho para construção de uma sociabilidade entre seres humanos e sua reintegração com a natureza diante da ruptura promovida pelo capital. Para nós, nesse momento histórico, o Plano Nacional Plantar Árvores e Produzir Alimentos Saudáveis tem sido a ferramenta para tentar integrar essa aspiração.

Este plano prevê o plantio de 100 milhões de árvores em 10 anos, e foi lançado em um contexto de pandemia do coronavírus e do bolsonarismo, além de um ataque fortemente organizado pelo agronegócio à natureza. Plantar árvores se torna uma necessidade e ferramenta essencial para o enfrentamento da crise climática.

Essa ação e o acúmulo em torno da produção de alimentos saudáveis apontam a urgência de um processo de massificação da agroecologia. Essa massificação só será possível se ocorrerem processos estruturados de desenvolvimento de tecnologias adaptadas para a produção camponesa, como a adaptação de máquinas para a realidade da produção familiar nos diferentes territórios do país, a produção de bioinsumos e a formação técnica. Além disso, a massificação da agroecologia passa por um processo de radicalização da cooperação autogestionada em todos os níveis, para garantir os processos de combate às desigualdades e à construção de autonomia.

Essa cooperação também contempla a aliança entre campo e cidade. Por isso, o diálogo entre os diferentes segmentos do cooperativismo popular é essencial para a transformação do sistema agroalimentar e do fortalecimento da agroecologia.

Crédito das fotos: MST